Sandro Magister. Humanae vitae
02 de fevereiro de 2018.
Tradução. Bruno Braga.
Cinquenta anos após a sua publicação, a Encíclica Humanae vitae [1], de Paulo VI, contra a contracepção artificial, está agora em plena reconstrução, como o Settimo Cielo documentou em publicação anterior [2].
É evidente a intenção do Papa Francisco de promover a virada – isto é, legitimar na prática os contraceptivos – nas modalidades mais tranquilizantes, como se fosse uma evolução natural e necessária, livre de rupturas, em perfeita continuidade com o magistério anterior da Igreja e com a mesma dinâmica “verdadeira” e profunda da Encíclica.
Porém, olhe um pouco mais para trás, este artifício não parece nada fácil de ser realizado. Existem palavras dos predecessores de Francisco que se erguem como montanhas contra uma mudança da doutrina da Humanae vitae.
São palavras que os partidários da mudança evitam citar, mas estão ali, é impossível eliminá-las.
Existe em particular um discurso de João Paulo II, de 12 de novembro de 1988 [3], que por si só bastaria para fechar o caminho.
Haviam se passado vinte anos da publicação da Humanae vitae, e o Papa Karol Wojtyla aproveitou a ocasião para defendê-la o máximo que pôde, esculpindo em pedra palavras como as seguintes:
“Não se trata de uma doutrina inventada pelo homem: foi escrita pela mão criadora de Deus na mesma natureza da pessoa humana e foi confirmada por Ele na Revelação. Colocá-la em discussão, portanto, equivale a recusar a Deus a obediência de nossa inteligência. Equivale a preferir o resplendor de nossa razão à luz da Sabedoria Divina, caindo, assim, na obscuridade do erro e acabando por atingir outros pontos fundamentais da doutrina cristã”.
Diante dele estavam Bispos e teólogos de todo o mundo, reunidos em Roma para um grande congresso, e precisamente sobre a Humanae vitae.
João Paulo II quis justamente identificar e refutar as razões que levaram muitos teólogos e pastores a recusar o que Paulo VI ensinara em sua Encíclica.
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A primeira dessas razões – disse – remete a uma compreensão equivocada do papel da consciência:
“Ao longo destes anos, como consequência da contestação contra a Humanae vitae, foi posta em discussão a mesma doutrina cristã da consciência moral, aceitando a ideia de uma consciência criadora da norma moral. Dessa forma foi rompido radicalmente o vínculo de obediência com a santa vontade do Criador, na qual se funda a mesma dignidade do homem. A consciência é, efetivamente, o ‘lugar’ em que o homem é iluminado por uma luz que não deriva da sua criada e sempre falível razão, mas da Sabedoria mesma do Verbo, na qual tudo foi criado. ‘A consciência – escreve admiravelmente o Vaticano II – é o centro mais secreto e o santuário do homem, onde se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser’ (Gaudium et Spes, 16)”.
Daí – continuou – brota uma má compreensão do Magistério da Igreja:
“Já que o Magistério da Igreja foi instituído por Cristo Senhor para iluminar a consciência, […] não é possível dizer que um fiel realizou uma diligente busca da verdade, se não tem em conta o que o Magistério ensina: se, comparando-o com qualquer outra fonte de conhecimento, ele se constitui juiz: se, na dúvida, segue antes a sua própria opinião ou a dos teólogos, preferindo-as em vez do ensinamento certo do Magistério”.
Assim também se corrompe a força vinculante da norma moral:
“Paulo VI, qualificando a contracepção como intrinsecamente ilícita, quis ensinar que a norma moral não admite exceções: nunca uma circunstância pessoal ou social pôde, não pode nem poderá converter um ato assim em ato ordenado por si. A existência de normas particulares com relação ao agir intramundano do homem, dotadas de uma força tal que obrigam a excluir, sempre e seja como for, a possibilidade de exceções, é um ensinamento constante da Tradição e do Magistério da Igreja que o teólogo católico não pode colocar em discussão”.
O erro é tão grave – prosseguiu João Paulo II – que põe em dúvida a santidade de Deus:
“Aqui tocamos um ponto central da doutrina cristã, referente a Deus e ao homem. Olhando-o bem, o que se coloca em questão, ao recusar este ensinamento, é a ideia mesma da santidade de Deus. Ele, ao nos predestinar a sermos santos e imaculados diante Dele, criou-nos ‘em Cristo Jesus, em ordem às boas obras que de antemão Deus dispôs que praticássemos’ (Ef. 2, 10): estas normas morais são simplesmente a exigência, que nenhuma circunstância histórica pode dispensar, da santidade de Deus, na qual participa concretamente, não em abstrato, cada pessoa humana”.
Anula a cruz de Cristo:
“Ademais, essa negação torna vã a cruz de Cristo (cf. 1 Cor. 1, 17). O Verbo, ao se encarnar, entrou plenamente em nossa existência cotidiana, que se articula em atos humanos concretos, morrendo por nossos pecados, recriou-nos na santidade original, devendo se expressar em nossa cotidiana atividade intramundana”.
E, finalmente, envolve a perda do homem:
“E, até mais: essa negação implica, como consequência lógica, que não existe nenhuma verdade do homem que escape do fluxo do devir histórico. O desvirtuamento do mistério de Deus, como sempre, acaba no desvirtuamento do mistério do homem, e não reconhecer os direitos de Deus, como sempre, acaba na negação da dignidade do homem”.
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Na conclusão desse discurso, João Paulo II exortou os docentes de teologia moral dos seminários a transmitir com absoluta fidelidade a mensagem da Humanae vitae. E, em especial, confiou essa tarefa ao Pontifício Instituto para os Estudos sobre o Matrimônio e a Família, fundado por ele, poucos anos antes, em Roma, e que precisamente naquele ano, 1988, havia criado sua primeira seção no exterior, em Washington.
Naquele momento, o diretor do Instituto era um teólogo de nome Carlo Caffarra, também consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, então presidida por Joseph Ratzinger, também um dos colaboradores mais próximos do Papa Wojtyla nas matérias referentes à vida e à família.
O pensamento e a pena de Caffarra são bastante reconhecíveis no texto do discurso citado acima.
Caffarra foi Arcebispo de Bolonha de 2003 a 2015, e foi um dos quatro Cardeais que, em 2016, apresentaram ao Papa Francisco cinco dubia [4] sobre a correta interpretação da Amoris Laetitia, a Exortação Pós-sinodal a partir da qual se quer hoje produzir uma mudança de paradigma na interpretação da Humanae vitae.
> Reler a Humanae vitae à luz da Amoris laetitia [5].
Francisco nunca respondeu os dubia nem o pedido apresentado pelos Cardeais para uma audiência, pedido apresentado a ele através de uma carta do próprio Caffarra, na primavera de 2017 [6].
Caffarra faleceu em 06 de setembro e, desde então, o Papa se absteve de qualquer sinal de compreensão e estima por ele, sequer no dia 01 de outubro, quando chegou de visita a Bolonha.
Quanto ao Pontifício Instituto que leva o nome de João Paulo II, o Papa Francisco o refundou no ano passado com um novo nome – “Para as Ciências do Matrimônio e da Família” – e, sobretudo, com um novo chanceler, na pessoa do Monsenhor Vincenzo Paglia, muito empenhado em “repensar” a Encíclica Humanae vitae e, por consequência, em legitimar os contraceptivos, porque – disse ele – “as normas são para fazer viver os seres humanos, não para fazer funcionar robôs”.
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(O discurso citado acima não é de forma alguma o único em que João Paulo II voltou a propor e defender o ensinamento da Humanae vitae. Pode-se recordar outro, de 5 de junho de 1987, dirigido aos participantes de um encontro de estudo sobre a condução natural da fertilidade [7]. E mais importante são as notas sobre a Humanae vitae incluídas por ele na Exortação Familiaris consortio [8], de 1981, e na Encíclica Veritatis splendor, de 1993.
NOTAS.
[1]. Cf. [http://w2.vatican.va/content/paul-vi/es/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_25071968_humanae-vitae.html].
[4]. Cf. [http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1351414ffae.html?sp=y].