Cardeal Raymond Leo Burke avalia as supostas declarações do Papa
Infovaticana, 06 de abril de 2018.
Gabriel Ariza.
Tradução. Bruno Braga.
Em uma entrevista para o La Nuova Bussola, o purpurado lamenta a situação produzida pelo silêncio de Francisco, explica que se pode criticar o Papa e que às vezes é inclusive um ato de obediência.
Há quem acuse de desobediência os que expressaram dúvidas, perguntas e críticas sobre a atuação do Papa, mas “a correção da confusão ou do erro não é um ato de desobediência, mas um ato de obediência a Cristo e, portanto, ao seu Vigário na Terra”. Assim se expressa o Cardeal Raymond Leo Burke nesta entrevista para o La Nuova Bussola, na véspera de um importante congresso que será realizado em Roma, no sábado 07 de abril, sobre o tema “Para onde está indo a Igreja”, e do qual o Cardeal Burke será um dos relatores. O congresso de Roma será realizado em memória do Cardeal Carlo Caffarra, falecido em setembro passado, e um dos signatários dos dubia, as cinco perguntas apresentadas ao Papa com o propósito de obter uma declaração clara de continuidade com o Magistério precedente após a confusão criada com as distintas, e às vezes opostas, interpretações da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia. Os dubia, assinados também pelo Cardeal Burke, nunca receberam resposta. O Papa Francisco tampouco respondeu às contínuas petições de audiência por parte dos Cardeais signatários.
Cascioli: Eminência, o senhor será um dos principais relatores do congresso de 07 de abril, que em nome do Cardeal Caffarra questionará em que direção está indo a Igreja. Pelo título do congresso já se percebe a preocupação com a direção tomada. Quais são os motivos de tal preocupação?
Burke: A confusão e a divisão na Igreja sobre as questões fundamentais e mais importantes, a saber, o matrimônio e a família, os Sacramentos e a correta disposição para ter acesso a eles, os atos intrinsecamente maus, a vida eterna e os Novíssimos, são cada vez maiores. E o Papa não só se nega a esclarecer as coisas mediante o anúncio da doutrina constante e a sã disciplina da Igreja, uma responsabilidade inerente ao seu ministério como Sucessor de São Pedro, mas aumenta tal confusão.
Cascioli: O senhor se refere também à multiplicação das declarações privadas dos que se encontram com ele?
Burke: O que tem acontecido com a última entrevista concedida a Eugenio Scalfari durante a Semana Santa, e que se tornou pública na Quinta-feira Santa, é intolerável. Que um famoso ateu pretenda anunciar uma revolução no ensinamento da Igreja Católica, dizendo que fala em nome do Papa, negando a imortalidade da alma humana e a existência do Inferno, foi um grande escândalo não só para muitos católicos, mas também para muitos leigos que sentem respeito pela Igreja Católica e seus ensinamentos, embora não comungue com eles. Ademais, a Quinta-feira Santa é um dos dias mais santos do ano, o dia em que o Senhor instituiu o Santíssimo Sacramento da Eucaristia e o Sacerdócio para, assim, nos oferecer sempre o fruto de sua Paixão e Morte Redentora para a nossa salvação eterna. E mais. A resposta da Santa Sé às reações escandalizadas que chegaram de todo o mundo foi muito inadequada. Em lugar de voltar a anunciar claramente a verdade sobre a imortalidade da alma humana e o Inferno, no desmentido está escrito apenas que algumas palavras citadas não são do Papa. Não disse que o Papa não compartilha as ideias errôneas, inclusive heréticas, expressas por essas palavras, nem repudia tais ideias, contrárias à fé católica. Este jogo que está sendo feito com a fé e a doutrina nos níveis mais altos da Hierarquia da Igreja está causando grande escândalo entre os pastores e os fiéis.
Cascioli: Se essas coisas são graves e são causa de vergonha, é motivo de assombro o silêncio de muitos pastores.
Burke: Certamente, a situação se agrava ainda mais por causa do silêncio de muitos Bispos e Cardeais que compartilham com o Pontífice Romano o cuidado para com a Igreja Universal. Alguns simplesmente se calam. Outros comportam-se como se nada de grave houvesse em tudo isso. Outros, ao contrário, disseminam fantasias sobre uma nova Igreja, uma Igreja que toma direção totalmente distinta da do passado, imaginando, por exemplo, um “novo paradigma” para a Igreja, ou uma mudança radical da práxis pastoral da Igreja, transformando-a em algo completamente novo. E também existem aqueles que defendem com grande entusiasmo a chamada revolução na Igreja Católica. Para os fiéis que compreendem a gravidade da situação, a falta de direção doutrinal e disciplinar por parte de seus pastores faz com que se sintam perdidos. Para os fiéis que não compreendem a gravidade da situação, essa ausência os deixa confusos e, com o tempo, são vítimas de erros prejudiciais para a sua alma. Muitas pessoas que entraram em plena comunhão com a Igreja Católica, que haviam sido batizadas em uma comunhão eclesial protestante e cujas comunidades eclesiais haviam abandonado a fé apostólica, sofrem muitíssimo com essa situação: percebem que a Igreja Católica está se dirigindo para o abandono da fé.
Cascioli: O senhor está retratando uma situação apocalíptica…
Burke: Toda essa situação me leva a refletir cada vez mais sobre a mensagem da Virgem de Fátima, que nos adverte sobre o mal da apostasia da fé dentro da Igreja, um mal mais grave que os danos gravíssimos causados pela difusão do comunismo ateu. O número 675 do Catecismo da Igreja Católica nos ensina que “antes do advento de Cristo, a Igreja deve passar por uma provação final que abalará a fé de muitos crentes” e que “a perseguição que acompanha a peregrinação dela na terra desvendará o ‘mistério da iniquidade’ sob a forma de uma impostura religiosa que há de trazer aos homens uma solução aparente a seus problemas, à custa da apostasia da verdade”.
Em tal situação, os Bispos e os Cardeais têm o dever de anunciar a verdadeira doutrina. Ao mesmo tempo, devem guiar os fiéis na reparação das ofensas contra Cristo e das feridas infligidas ao Seu Corpo Místico, a Igreja, quando a fé e a disciplina não são propriamente salvaguardadas e difundidas pelos pastores. O grande canonista do século XIII, Henrique de Susa ou “o Hostiensis”, ao abordar a difícil questão de como corrigir um Pontífice Romano que age de maneira contrária ao seu ofício, afirma que o Colégio Cardinalício constitui um controle de fato contra o erro papal.
Cascioli: Sem dúvida, a figura do Papa Francisco é muito discutida hoje em dia. Passa-se facilmente da exaltação acrítica de qualquer coisa que ele faça à crítica impiedosa por qualquer gesto ambíguo. Mas, de alguma maneira, o problema de como fazer referência ao Papa vale para cada um dos Pontífices. Portanto, algumas coisas precisam ser esclarecidas. O que o Papa representa para a Igreja?
Burke: De acordo com o ensinamento constante da Igreja, o Papa, por vontade expressa de Cristo, é “o perpétuo e visível fundamento da unidade, não só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis” (Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, Concílio Vaticano II, n. 23). É serviço fundamental do Papa salvaguardar e difundir o depósito da fé, a verdadeira doutrina e a sã disciplina coerente com as verdades nas quais se crê. Na entrevista a Eugenio Scalfari, citada anteriormente, fala-se, de forma complacente, do Papa como um “revolucionário”. Mas o Ofício Petrino não tem nada a ver, absolutamente nada, com a revolução. Pelo contrário, ele existe exclusivamente para preservar e difundir a fé católica imutável que leva as almas à conversão do coração e a humanidade à unidade fundada na ordem inscrita por Deus em Sua criação, sobretudo no coração do homem, a única criatura feita à imagem de Deus. É a ordem que Cristo restaurou para o Mistério Pascal, e que estamos celebrando nestes dias. A graça da Redenção, que emana do Seu Coração transferido glorioso na Igreja para os corações de seus membros, dá a força para viver segundo essa ordem, isto é, em comunhão com Deus e com o próximo.
Cascioli: Seguramente, o Papa não é um soberano absoluto; no entanto, hoje é percebido assim. “Se disse o Papa”… É o modo habitual de cortar qualquer pergunta ou dúvida sobre algumas afirmações. Há uma espécie de “papolatria”. Como se responde a isso?
Burke: A noção da plenitude do poder do Romano Pontífice foi claramente enunciada pelo Papa São Leão Magno. Os canonistas da Idade Média contribuíram muitíssimo com o aprofundamento do poder inerente ao Ofício Petrino. Sua contribuição continua sendo válida e importante. A noção é bastante simples. O Papa, por vontade divina, goza de todo o poder necessário para salvaguardar e difundir a verdadeira fé, o verdadeiro culto divino e a sã disciplina necessária. Esse poder não pertence à sua pessoa, mas ao seu ofício como Sucessor de São Pedro. No passado, os Papas não tornavam públicos os seus atos pessoais ou opiniões, justamente para não correrem o risco de confundir os fiéis sobre o que faz e pensa o sucessor de São Pedro. Atualmente, costuma-se confundir a pessoa do Papa com o seu ofício, algo que pode ser muito prejudicial, e cujo resultado é o obscurecimento do Ofício Petrino e um conceito mundano e político do serviço do Pontífice Romano na Igreja. A Igreja existe para a salvação das almas. Qualquer ato de um Papa que mine a missão salvífica de Cristo na Igreja, seja um ato herético ou um ato pecaminoso em si mesmo, está simplesmente vazio do ponto de vista do Ofício Petrino. Portanto, embora claramente cause um grande dano às almas, não pede a obediência de pastores e fiéis. Temos que distinguir sempre o corpo do homem que é o Pontífice Romano do corpo do Romano Pontífice, isto é, do homem que exerce o ofício de São Pedro na Igreja. Não fazer essa distinção significa “papolatria”, e pode levar à perda da fé no Ofício Petrino divinamente fundado e sustentado.
Cascioli: Em sua relação com o Papa, o que é mais importante para um católico?
Burke: O católico sempre deve respeitar, de forma absoluta, o Ofício Petrino como parte essencial da instituição da Igreja por parte de Cristo. Se o católico deixa de respeitar o ofício do Papa, é porque está disposto ao cisma e a apostatar da fé. Ao mesmo tempo, o católico deve respeitar o homem que está encarregado do ofício, o que implica atenção ao seu ensinamento e direção pastoral. Esse respeito inclui também o dever de expressar ao Papa o juízo de uma consciência retamente formada quando este se desvia, ou parece se desviar, da verdadeira doutrina e sã disciplina, ou se abandona as responsabilidades inerentes ao seu ofício. Para o direito natural, para os Evangelhos e para a tradição disciplinar constante da Igreja, os fiéis devem expressar aos seus pastores as suas preocupações sobre o estado da Igreja. Têm esse dever, ao qual corresponde o direito de receber uma resposta da parte dos seus pastores.
Cascioli: Portanto, é possível criticar o Papa? E em quais condições?
Burke: Se o Papa não cumpre com o seu ofício para o bem de todas as almas, não só é possível criticar o Papa como é necessário fazê-lo. Essa crítica deve seguir o ensinamento de Cristo sobre a correção fraterna no Evangelho (Mt. 18, 15-18). Primeiro, o fiel ou o pastor deve expressar a sua crítica de forma privada, o que permitirá ao Papa se corrigir. Mas, se o Papa se nega a corrigir o seu modo de ensinar ou de agir que é gravemente faltoso, a crítica deve ser pública, porque tem a ver com o bem comum na Igreja e no mundo. Alguns criticaram os que expressaram publicamente a crítica ao Papa como uma manifestação de rebeldia ou de desobediência, mas solicitar – com o devido respeito ao seu ofício – que se corrija a confusão ou o erro não é um ato de desobediência, mas um ato de obediência a Cristo e, portanto, ao Seu Vigário na Terra.