Lc 14, 1-24; Mc 6, 34-44
Os apóstolos e sobretudo os evangelistas se preocupavam em deixar considerações nas entrelinhas do que escreviam, para nos ensinar algo mais. Aos relatos, costumavam mesclar principalmente assuntos do Antigo Testamento.
Vejamos, em Lucas e Marcos, alguns exemplos.
No capítulo 14 de Lucas temos parábolas onde Jesus nos ensina, falando de bodas, jantar e cerimônias. Talvez por ter sido muito convidado para tais ocasiões, às quais os judeus davam muita importância.
Na parábola "A escolha dos lugares" ou "Lição de um humilde", Jesus ensina que, quando formos convidados para uma festa, devemos nos colocar nos últimos lugares e não nos primeiros, pois pode chegar alguém mais importante e o dono da festa nos pedir para ceder-lhe o lugar, o que nos deixaria envergonhados. Ocupando os últimos lugares, poderá ocorrer o contrário, sermos chamados mais para cima, o que seria para nós uma glória em presença de todos os convivas. Este é um recado prático de Jesus.
Na parábola seguinte, Jesus conta a história de um homem que deu um banquete e convidou a muitos, mas todos deram uma desculpa para não comparecer. Na verdade não estavam interessados naquela festa. O homem, indignado, disse ao servo: "Vai depressa pelas praças e ruas da cidade e introduz aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos." O servo assim fez e, voltando, relatou-lhe um fato interessante: "Senhor, o que mandaste já está feito, e ainda há lugar. O dono da casa disse então ao servo: 'Vai pelos caminhos e trilhas e obriga as pessoas a entrarem, para que a minha casa fique repleta'".
Interessante, foi usada a palavra obriga, ou seja, impõe, põe no dever. Precisamos entender que Lucas era um médico grego, que não conheceu Jesus. Ele explica, nas entrelinhas desta parábola, a história da cristandade.
Primeiramente, o grande convite feito por Jesus e a recusa dos convidados. Na segunda etapa da cristandade, Ele convida os coxos, cegos, isto é, os pequenos, como nós, que não temos doutorado em teologia, viemos de uma formação acadêmica modesta… E aceitamos.
Após ter aceitado, os anjos dizem: "Senhor, ainda há lugar". Quer dizer, nos últimos tempos, haverá lugar para mais gente. Deus, de imensa misericórdia, diz para forçar a entrada, porque Ele quer todos os pequenos neste banquete.
No final dos tempos, algo de muito grande irá acontecer. Até mesmo pessoas que não são cristãs, serão incluídas no grande banquete de Deus. É sobre isto que Lucas fala.
Vamos, agora, observar o que nos diz Marcos, no capítulo 6. Possivelmente ele estivera presente ao milagre da "Primeira multiplicação dos pães".
Foi dito que naquele lugar havia cinco mil homens, que estavam ali para ouvir Jesus. Quando os apóstolos responderam a Jesus, dizendo: "Iremos comprar duzentos denários de pão para dar-lhes de comer?", para eles esta expressão significava o seguinte: vamos comprar o impossível, não temos condições para isto.
Marcos poderia ter explicado apenas que havia pães e peixes. Qualquer que fosse a quantidade, não seria suficiente para alimentar tanta gente. Outra informação numérica: assentaram-se em grupos de cem e de cinquenta. Será que estavam tão organizados, a ponto de formar grupos certinhos de cem e de cinquenta pessoas?… E ainda recolheram doze cestos cheios dos pedaços de pão e de peixe. Será que foi este número mesmo? Será que eles contaram os cestos? Marcos não estava mentindo. Na verdade entremeava no relato ensinamentos importantes, para que outros judeus entendessem o que dizia. Este era o costume dos evangelistas.
Os duzentos denários eram, portanto, um modo de dizer: comprar pão para esta multidão é impossível.
Os cinco pães representavam, para os judeus, o número perfeito, o número da fortuna, da base da alimentação da pessoa. Era o alimento completo. Já os dois peixes significavam a carne pura e sem sangue. Portanto, são números perfeitos o dois e o cinco.
Os doze cestos cheios que recolheram simbolizavam os eleitos que, alimentados por Deus, no final retornarão ao Pai. Marcos quis aqui entrar no discurso de Jesus. Fez o que era costume entre os apóstolos: entremear ensinamentos importantes, para que os judeus entendessem o que falavam. Marcos estava suscitando algo a mais dos ensinamentos de Jesus.
Quando se referiam ao Templo, não falavam necessariamente do Templo de Jerusalém. Havia muitas sinagogas, templos; portanto, as pessoas que circulavam por aquele lugar não iam além de cinco mil. Marcos entendeu a espiritualidade de Cristo, neste milagre. Houve realmente a multiplicação dos pães e dos peixes. E ao narrar o fato, Marcos expressou todas as considerações numéricas, para que pudéssemos aprender algo mais.
Entendemos, portanto, que os doze cestos (os eleitos) foi o que recolheram daquilo que era perfeito: a base, a estrutura, ou seja, os cinco pães e os dois peixes representando a pureza, a carne sem sangue.
É muito interessante lermos o Evangelho e percebermos com que acuidade os apóstolos permeavam em suas entrelinhas o caminhar de Jesus, o Seu agir. O próprio João Evangelista disse que se fosse colocar na Bíblia todos os ensinamentos, milagres e sinais de Jesus não haveria no mundo lugar para guardar os livros que se deveria escrever. Quer dizer, então, que Jesus falou e fez ainda muitas outras coisas. Há, portanto, milagres e ensinamentos que não conhecemos. Está ali apenas o necessário para a nossa salvação. Aqui Jesus fez o milagre da multiplicação do alimento, não necessariamente do pão e do vinho, pois Ele se preocupava com a multidão que o acompanhava.
Outro momento interessante é quando os discípulos lhe disseram: "O lugar é deserto e a hora já muito avançada. Despede-os para irem aos campos e aldeias (…)". Marcos ficou atento e não deixou passar, pois "o lugar é deserto" significa que aquele povo estava na aridez da palavra e a hora findava, ou seja, já chegava o momento de Jesus sofrer a paixão, para depois vir o grande Pentecostes, a fim de que pudessem entender o que se passara. Os apóstolos eram inteligentes, e suas palavras inspiradas.
Referência: LOPES, Raymundo. Os primeiros lugares e a primeira multiplicação dos pães I: Lc 14, 1-24; Mc 6, 34-44. In: LEMBI, Francisco (Org.). O Código Jesus. Belo Horizonte: Magnificat, 2007. p. 171.