A revelação cristã diante da herança judaica

Jo 9, 1-41

Para melhor compreensão deste Evangelho, é necessário recordar o que Jesus diz no cap. 8, v. 58: "Em verdade vos digo: antes que Abraão nascesse, Eu sou."

Estas palavras produziram um conflito, no qual os presentes, não as aceitando, queriam apedrejá-lo. Depois que Jesus saiu daquela situação, viu um cego de nascença, que não conhecia por isso o mundo físico. Mas, que cegueira é esta? Não seria sobre a divindade de Cristo?… Precisamos analisar esta questão, por ser muito importante.

Naquele momento, Seus discípulos indagaram: "Mestre, quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?" Eles, na verdade, questionaram o seguinte: Em relação à Tua divindade, ele é cego por culpa própria ou por herança de Abraão? Neste caso, quem pecou? Ele ou seus pais?

Jesus, reportando-se à história, respondeu: "Nem ele nem seus pais, mas é para que nele se manifestem as obras de Deus." Isto é, nem o presente e nem o passado fizeram com que isto acontecesse. A cegueira humana existe, é por isso que a obra de Deus se faz presente. Em cima de nossa cegueira de nascença, de nossa ignorância é que Deus se manifesta.

O cego sabe que existem o azul, o amarelo, mas nunca os viu. Então, esta é a cegueira que temos em relação a Deus: sabemos que Ele existe, mas não o vemos senão em Sua criação.

Jesus continuou dizendo: "É necessário que realizemos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; vem a noite, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo." Jesus aqui separa a situação do dia e da noite. O dia é quando podemos enxergar, entender as coisas de Deus, as palavras de Jesus e trabalhar em prol delas; e a noite é quando, mesmo sabendo que existem, já não conseguimos fazer isso, por termo-nos afastado dele, que é a luz do mundo.

Então, um denso e escuro nevoeiro estará envolvendo a humanidade. "Tendo dito isto, Jesus cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-a sobre os olhos do cego e lhe disse: 'Vai lavar-te na piscina de Siloé'. O cego foi, lavou-se e voltou enxergando."

Sabemos que o homem fala não só porque tem a língua, mas também por ter a saliva que a lubrifica, facilitando a pronúncia. Por isso Jesus usou de Sua saliva. Ao cuspir no chão, Ele quis juntar o poder de Sua palavra com aquilo que nós temos na matéria: o barro. A piscina de Siloé significa o enviado, por isso Jesus mandou que ele se lavasse nela, que é como um poço, uma nascente de esperança na terra, representando a presença de Deus.

Tudo isso é para entendermos que Jesus dizia o seguinte: Estou lhe dando o poder de minha palavra, junto com a sua matéria, para que você abra os olhos e veja. Vá se lavar no poço da vida, no enviado. "Antes que Abraão nascesse, Eu sou", disse Ele. As pessoas não acreditaram e ainda quiseram lhe atirar pedras. Somos essas pessoas. Somos cegos de nascença, sabemos que Deus existe, mas não o vemos ou não o queremos ver. A humanidade precisa conhecer Cristo humanizado e viver Suas palavras, incorporando-as à vida.

"Os vizinhos e os que estavam acostumados a ver o cego, que era mendigo, diziam: 'Não é aquele que ficava pedindo esmola?' Alguns respondiam: 'É ele'. Outros afirmavam: 'Não, mas alguém parecido com ele'. Ele, porém, dizia: 'Sou eu mesmo.'"

Aqui entendemos que a expressão mendigo refere-se à humanidade suplicante, que pede a Deus alimento. Uns diziam que era ele mesmo, outros que não, ou seja, a própria humanidade sem entender a presença de Cristo humanizado, confirmando sua cegueira.

É como dissessem: É impossível, Deus não pode ser humanizado, não pode ser desta forma. "Então lhe perguntaram: 'Como se abriram os teus olhos?'" É como lhe perguntassem: Se você era cego de nascença, sempre sentiu mas nunca viu as coisas, como seus olhos se abriram? Como você encontrou Deus, o viu, conheceu Jesus?

Ele respondeu: "Aquele homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e me disse: 'Vai a Siloé e lava-te'. Fui, lavei-me e comecei a ver". Pela primeira vez ele explicava a história toda. Isto quer dizer: Deus, humanizado, usou daquilo que somos, barro, e fez o homem enxergar; e depois lhe disse para se lavar na fonte do enviado, que é Jesus. "Perguntaram-lhe: 'Onde está ele?' Respondeu-lhes: 'Não sei'".

Isto é muito interessante. Então, onde está esse Deus humanizado? Apesar do cego ter recobrado a vista, não sabia onde Ele estava; mas devia saber, pois já enxergava. Assim é a humanidade: sabe que Deus existe, mas não sabe onde encontrá-lo.

Levaram aquele homem que tinha sido cego aos fariseus. Era sábado, quando Jesus fez lama e lhe abriu os olhos. Os judeus, que consideravam o sábado o Dia do Senhor, sabiam que nesse dia não se podia fazer nada, nem mesmo milagre. No entanto, Jesus quis se manifestar nesse dia.

Os fariseus, por sua vez, perguntaram ao homem como tinha recobrado a vista. Ele respondeu: "Ele aplicou-me lama nos olhos, lavei-me e agora vejo". Pela segunda vez o homem contava aquela história. Os fariseus diziam, entre si, que ele não era enviado de Deus, por não guardar o sábado. Sabemos que Jesus já havia dito: "O sábado não foi feito para o homem e nem o homem foi feito para o sábado. Eu sou o dono do sábado". Outros diziam: "Como pode um pecador fazer tais prodígios?" Isto significa que a humanidade ainda estava presa àquela forma de pensar: Deus não pode se humanizar.

Novamente os fariseus perguntaram ao cego: "Que dizes de quem te abriu os olhos? Respondeu: 'É um profeta.'" Ser profeta não é apenas falar do futuro, mas falar de Deus, tendo recebido dele a autoridade de Sua palavra.

Os fariseus, não admitindo que aquele homem tivesse sido cego e recobrado a vista, perguntaram a seus pais (os pais aqui representam a herança judaica): "Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido cego?" Isto é a própria humanidade cega, os degredados filhos de Eva, procedentes daquela herança judaica que os cegara. Eles mesmos se interrogavam: Nós produzimos um filho cego? Os fariseus ainda perguntaram:

"Como é que agora ele enxerga? Seus pais então responderam:Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego.”

É isto que Jesus quis dizer: Olha, Eu sou antes de Abraão, tudo isso que vocês fizeram resultou numa humanidade que não enxerga. Estou aqui e vocês não me vêem. Vou fazer com que me vejam pelo poder de minha palavra (a saliva). Vocês vão enxergar, e mesmo assim terão dúvida. Os pais ainda disseram: "Como agora ele enxerga, e quem lhe abriu os olhos, não o sabemos."

Como é que ele vê? Não sabemos. Quem lhe abriu os olhos? Não sabemos. Os pais continuaram: "Interrogai-o. Ele tem idade. Ele pode falar por si mesmo". É como dissessem: Nós não podemos explicar uma coisa destas; mas agora, vocês que já têm idade e experiência, que expliquem toda essa situação, porque hoje enxergamos, mas não sabemos quem fez o milagre.

Seus pais responderam daquela forma porque tinham medo dos judeus. Isto quer dizer que a herança judaica tinha medo daquele presente. Os judeus eram muito formais, cheios de normas e regras para tudo. Eles já não sabiam mais o que fazer com tudo aquilo. Já haviam decidido não mais permitir a entrada na Sinagoga daqueles que confessassem que Jesus é o Cristo, o Enviado, a fonte de Siloé.

Por isso é que os pais disseram que ele tinha idade suficiente, ou seja, já estão prontos para enxergar e ser responsáveis por isto. Queriam dizer que, se o Cristo entrar no contexto de vocês, a partir de agora, vocês estarão enxergando e serão responsáveis por este conhecimento da presença de Jesus entre vocês.

Os judeus chamaram o homem que tinha sido cego e disseram-lhe: "Dá glória a Deus! Sabemos que esse homem é pecador. Respondeu ele: “Se é pecador, não sei, só sei que eu era cego e agora vejo.” Perguntaram-lhe (pela terceira vez): “Que te fez Ele? Como te abriu os olhos?” Respondeu-lhes: “Já vos disse e não ouvistes. Por que quereis ouvir novamente? Por acaso quereis tornar-vos Seus discípulos?” O homem não repetiu a história, pois já a havia contado três vezes. Esse é um diálogo interessante e difícil entre a situação presente do judeu e a sua herança.

Em seguida, observamos um diálogo que demonstra o momento da ruptura entre a tradição judaica e a cristã. Os judeus puseram-se a injuriá-lo, dizendo: "Tu, sim, és discípulo dele; nós somos discípulos de Moisés. Sabemos que Deus falou a Moisés, mas este, não sabemos de onde é."

Temos aqui, novamente, a herança judaica se manifestando, aquela em que Jesus se colocou antes dela, antes de Abraão. Foi quando então a herança judaica fez a sua escolha, foi o momento da ruptura entre o passado e o presente.

Jesus abriu os olhos dos judeus com o poder de Sua palavra, mesmo assim eles fizeram uma escolha. Foi como Jesus dissesse: Vocês não querem enxergar, preferem ficar com Moisés. Não querem ver que estou aqui, humanizado, diante de vocês.

O homem que tinha sido cego respondeu aos fariseus, salientando que "Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença", e que, "Se este homem não fosse de Deus, nada poderia fazer". Os fariseus disseram-lhe: "Tu nasceste todo no pecado e nos ensinas?".

Mais uma vez observamos que a herança antiga confirma a ruptura e age como um divisor de águas. É como se Jesus dissesse: Eu sou Deus humanizado, a partir de agora vou lhes abrir os olhos para enxergarem de outra maneira. Mas os fariseus fizeram esta opção: não queremos, vamos manter a nossa tradição. Aí então aconteceu a ruptura entre o Velho e o Novo Testamento.

Este Evangelho do cego é para mostrar a ruptura judaica a partir da manifestação de Cristo. Entendemos, portanto, que a herança judaica convivia com a ideia de Deus, sabia da Sua existência, mas não o conhecia. Deus, então, curou-lhes a cegueira. Mas mesmo assim não aceitaram e resolveram, ali, tomar uma decisão: ficar com aquele que entendiam: Moisés.

Decidiram não acreditar que Jesus fosse o Messias. A fonte de Siloé, o cego de nascença, os diálogos, tudo isto não foi suficiente para levá-los ao entendimento, preferiram a divisão ao rompimento com a herança. Daí, temos o judaísmo e o cristianismo.

Jesus soube que expulsaram o homem que havia curado, isto é, expulsavam a cristandade nascente. Encontrando-o, disse-lhe: "Crês no Filho do Homem?" Aqui Jesus já não estava mais preocupado com os judeus, Ele falava da Igreja nascente: Acreditas no Deus humanizado? Ele respondeu: "Quem é, Senhor, para que eu creia nele?" Foi preciso enxergar mais uma vez. E Jesus abriu-lhe os olhos pela segunda vez.

Uma coisa é ver, outra é crer. Jesus lhe disse: "Tu o estás vendo, é quem fala contigo." Deus aí se revelou para a cristandade. O homem exclamou: "Creio, Senhor! E prostrou-se diante dele. Então Jesus disse: “Para julgamento é que vim a este mundo, para que os que não enxergam, vejam, e os que vêem tornem-se cegos.” Cegos a essa herança judaica, deixando o passado e abraçando o presente.

Jesus veio a este mundo para que toda a herança judaica fizesse uma escolha: os que não viam passassem a ver, e os que viam ficassem cegos. Isto porque podemos muito bem pertencer à herança de Cristo e não querer enxergá-lo, por conveniência ou por auto-suficiência, fiando em luzes próprias. Aí entra, então, o julgamento do Cristo. Alguns fariseus que estavam com Ele ouviram isto e lhe disseram: “Porventura também nós somos cegos?” Ou seja, a tradição judaica é toda cega? Respondeu-lhes Jesus: "Se fôsseis cegos não teríeis culpa; mas como dizeis: “Nós vemos!', vosso pecado permanece.”

Observem como Jesus os conduzia para mostrar como se dá o Seu julgamento (não se fala aqui de condenação). Vocês não são cegos, já têm o conhecimento, já viram, mas como continuam reticentes e não querem mudar, o pecado de vocês permanece. Se fossem cegos, não teriam pecado. Essa cegueira a que Jesus se refere é a do conhecimento.

O final do cap. 8 e o cap. 9 de João nos mostram o julgamento de Deus entre a tradição judaica e a Cristã. Portanto, entendemos que o cego de nascença é aqui aquele fio condutor que inicia com Jesus, na Sua revelação, levando todos ao conhecimento, para que possam enxergar e fazer a sua escolha. Deus respeita o livre-arbítrio, permitindo ao homem fazer essa escolha consciente, mas que implicará, por consequência, na sua permanência ou não no pecado.

 

Referência: LOPES, Raymundo. A revelação cristã diante da herança judaica: Jo 9, 1-41. In: LEMBI, Francisco (Org.). O Código Jesus. Belo Horizonte: Magnificat, 2007. p. 90.

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