Roma: uma conversa que não estava no programa

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Raymundo tem uma conversa acalorada com o padre Gabriele Amorth em Roma. “O senhor está exorcizando as pessoas erradas, com problemas psicológicos, e o diabo as aproxima do senhor tentando ganhar tempo. Enquanto o senhor perde tempo com essas coisas, ele ganha terreno nas áreas que vocês nem imaginam”.

15 a 30 de abril de 2010

Cheguei a Roma e me dirigi para o hotel. Depois fui ajudar a irmã Gertrudes a atravessar a rua, porque ela insistia em visitar a Casa Mãe da sua congregação, que fica em frente ao hotel. Em seguida fui andar um pouco. Como me afastava muito, resolvi voltar ao hotel para apanhar o cartão com o seu endereço, quando então a gerência me comunicou que o padre Gabriele Amorth tinha telefonado. Tinha deixado seu número para que eu retornasse a ligação.

Devo esclarecer que, dias antes de viajar, eu tinha enviado uma correspondência ao padre, com o endereço e o telefone do hotel em que ficaria hospedado.

Liguei, e foi o próprio padre Gabriele que me atendeu. Essa conversa por telefone foi feita em italiano. Mas, como eu não falo bem a língua, foi com extrema dificuldade que nos comunicamos. Ele me perguntou:

– Você se chama Raymundo ou Daniel?

– Me chamo Raymundo.

– Então por que eles insistem que vou me encontrar com Daniel?

– Não sei, padre, no Brasil muitas pessoas me chamam de Daniel, mas meu nome de batismo é Raymundo.

– A Virgem Maria o chama de Daniel?

– Às vezes sim, às vezes me chama de Raymundo.

– Não entendi!…

– Até agora, nem eu entendi!…

– Você já se encontrou com o demônio?

– Já.

– Ele lhe fez algum mal?

– Não.

– Chamou você por qual nome?

– Pelas duas versões: Raymundo e Daniel.

– Você pode vir aqui agora?

– Posso. Onde encontro o senhor?

– Na Igreja Santa Cruz de Jerusalém, aí pertinho de onde está. Deixarei recado para que eles o encaminhem a mim logo que chegar. Passe bem.

E desligou.

Quando cheguei, fui logo introduzido na sacristia e depois numa sala pequena. Minutos depois chegou padre Gabriele, falando italiano e rindo:

– Estou falando com Daniel ou Raymundo?

– De quê o senhor ri?… – perguntei.

– Nada, apenas estou pensando alto!…

– O senhor tem o costume de pensar alto? – repliquei.

– Às vezes tenho, e você?

– Não, não penso alto; os meus pensamentos são meus, e é muito difícil de os compartilhar com alguém.

Falei sério porque a situação me causou muito constrangimento. Pareceu que padre Gabriele caiu em si e tomou uma atitude séria. Começou a me tratar com mais atenção e foi logo falando que iria pedir um intérprete, um padre que já tinha vivido no Brasil. O padre chegou, e então continuamos a conversa, agora com a mediação do intérprete.

Com uma revista nas mãos, o padre Gabriele me perguntou:

– Você tem alguma coisa a ver com esta revista?

Ele me entregou a revista e alguns papéis. Vi que era a Isto É brasileira. Respondi que não. Ele tomou então uma postura muito nervosa. Disse que aquela entrevista nunca tinha acontecido, que aquelas considerações sobre ele não eram verdade. Afirmou que nunca dissera que o diabo vivia no Vaticano, que é amigo do papa, enfim, tudo aquilo era uma calúnia. Por várias vezes perguntou-me se eu trabalhava na revista e se eu tinha algo a ver com aquelas declarações. Quis saber o que era a Canção Nova. Expliquei como pude.

Depois perguntou:

– Qual é a sua atividade no Brasil?

– Eu sou uma pessoa aposentada.

– O que é aposentado?

– É uma pessoa que trabalhou por algum tempo e depois teve direito a uma remuneração mensal por tempo de serviço prestado.

– Isso é do governo brasileiro?

– Sim, é.

– Vamos falar do demônio?… Quantas seitas existem no Brasil?

– Muitas, mas não sei quantas.

– Você já fez exorcismo?

– Não.

– Já participou de alguns?

– Já.

– Quantos?

– Não sei.

– Você convive com padres, sacerdotes, bispos etc.?

– Convivo, mas não tenho liberdade de tratar nada com eles.

– Como assim?… Me falaram que você dirige uma associação enorme e respeitada pela Igreja, dirige orações numa igreja conceituada da sua cidade; como não convive com padres nem bispos?…

– Eles não acreditam em mim.

– Como não acreditam?… Disseram que você conhece a fundo o Evangelho e os padres o respeitam.

– Como vocês conhecem, eu não conheço; apenas leio e procuro entender como Jesus agia.

– Foi Nossa Senhora que lhe ensinou assim a desrespeitar a Igreja e os padres?

– Não, apenas convivendo com vocês, procurei por conta própria entendê-los.

– E você nos entende?

– Acho que sim. O senhor me disse para falarmos do diabo; o diabo é isso?

– Não, claro que não.

– Como os padres estão agindo, me parece coisa do demônio…

– Existem padres pecadores e padres santos – ele disse, levantando-se da cadeira.

– De quais o senhor deseja falar?

– Não me confunda, iremos tratar daquilo que aflige a Igreja numa ferrenha tentação demoníaca.

– Padre Gabriele, da maneira que o senhor dá crédito a exorcismos e fica triste porque a Igreja não autoriza vocês a praticá-los, vejo isso como uma brincadeira do diabo.

– Brincadeira?…

– Sim, brincadeira, porque quando o diabo quiser tentar alguém, não lança mão de espetáculos horríveis como pessoas falando grosso, outras línguas, cuspindo na gente, enrolando a língua, virando o pescoço etc. Ele lança mão daquilo que é mais eficiente do que assustar, lança mão da tentação da língua, da sutileza da maledicência, da mentira que prejudica alguém etc.

– Você tem razão – ele respondeu. Você tem razão. Então o diabo em que você acredita tenta a Igreja, os leigos por meios sutis; é isto que deseja me falar?

– Estou falando que o senhor está exorcizando as pessoas erradas, com problemas psicológicos, e o diabo as aproxima do senhor tentando ganhar tempo. Enquanto o senhor perde tempo com essas coisas, ele ganha terreno nas áreas que vocês nem imaginam. A Igreja, proibindo exorcismos desses casos, é o próprio Espírito Santo agindo, e vocês não percebem que o exorcismo que vocês praticam é somente uma encenação, porque o diabo está agindo em outra área.

O padre Gabriele ficou possesso de raiva, e começou a gritar que eu estava precisando de exorcismo:

– Não falei! não falei! O diabo está presente.

Eu comecei a rir, e a situação piorou. Até que eu coloquei a minha mão sobre a cabeça dele e disse:

 – Fique calmo, porque o senhor é muito pequeno para que o diabo perca tempo; ele agora está preocupado com áreas maiores.

Ele replicou:

– Com que área o diabo está preocupado, fazendo valer sua influência?

– Com vocês padres, que abrem caminho para que ele aja. Por exemplo: erros do passado, língua solta e impura, pedofilia, traições sobre a doutrina da Igreja etc.

– Mas é justamente isto que condeno!

– É, e é aí que o trabalho do diabo se faz presente! Experimente não ligar para o que seus colegas padres, bispos, cardeais proíbem, e passe a evitar o exorcismo. Isso é uma prática que qualquer leigo pode exercer; o diabo não terá como entrar nas pessoas induzindo-as a essas coisas que minam a fé. Os padres não têm como proibir, e o seu trabalho terá muito mais sucesso.

– Vejo que você não conhece o diabo! – ele exclamou.

– Vamos por parte, acho que o diabo é que não me conhece!

– Por quê?

– Primeiro pela graça de Deus, depois porque estou lidando numa área em que ele não imagina que um ser humano possa agir. Ele tem certeza de que todos já estão possuídos do seu poder. Vamos esquecer os que já estão possuídos, e vamos perder tempo para que o mal não se alastre.

– O que você está fazendo em Roma agora? – ele perguntou.

– Vim acertar algumas coisas no Vaticano.

– Que coisas?

– Não posso falar com o senhor.

– Fale em confissão.

– Não, o meu confessor ficou na minha cidade.

– Estou perdendo o meu tempo – ele resmungou me olhando.

Depois tentou me segurar e me empurrou numa cadeira:

– Você tem medo de água benta?

– Não, tenho medo daquilo que o diabo não tem!

– O quê, por exemplo?

 – Da língua das pessoas, das dissimulações, de pedir ao diabo para não fazer aquilo que a gente mesmo está fazendo, para proceder corretamente, se não estamos procedendo conforme os mandamentos da Lei de Deus, mentiras etc.

 – Então você é contra exorcismo?

 – Sou contra essas besteiras que andam falando por aí, porque o diabo pretende parecer justo, carinhoso, piedoso, religioso. O diabo é o primeiro a subir nos altares, acompanha procissões, ajuda a fazer adorações ao Santíssimo, transfigura-se em Nossa Senhora. Quando presencio pessoas falando línguas desconhecidas, falando grosso, virando o pescoço para trás, vomitando e flutuando, percebo com clareza que se trata de forças psíquicas desconhecidas atuando. Não vejo o diabo ali, é uma encenação muito malfeita para o “anjo da luz”, ele é mais inteligente do que isso. Desta forma ele estaria assustando as pessoas. O diabo não age assim.

Ele me interrompeu, dizendo:

– Em papas!…

– Se vocês abrem caminho para que pessoas ruins se transformem em papas, isso acontece, mas o ônus desse pecado recai sobre nós que abrimos esse caminho.

– Por que você não foi ser padre?

– Acho que é porque Nossa Senhora estava necessitando de um leigo que pudesse enganar o diabo.

– Você se acha santo?

– Por enquanto, não…

– Você conhece o novo ritual para exorcistas?

– Conheço.

– O que achou?

– Uma grande baboseira. O diabo dá boas gargalhadas, não se espanta capeta com orações predeterminadas, se o exorcista não for uma pessoa correta e santa.

– Você está me chamando de incorreto?

– Não, estou chamando o senhor de vítima do diabo. Ele está fazendo do senhor uma ponte para ficar livre para tentar outras pessoas, inclusive a Igreja. Existe ainda o agravante de que com a atitude do senhor, criticando os padres e bispos dizendo que eles proíbem o exorcismo, fará com que leigos passem a ver esses bispos e padres como pessoas contrárias ao Evangelho.

– Jesus espantou um endemoniado que se retorcia todo!  – ele disse, interrompendo.

– Diante de Jesus, a pureza em pessoa, não adiantava dissimular com elogios e corromper a doutrina. Ele se expôs enfrentando-o com encenações grotescas, porque ele sabia que iria influenciar as pessoas. O que fez Jesus? Ordenou-lhes que entrassem nos porcos e depois se atirassem no abismo.

– Diga-me com franqueza, o que veio fazer em Roma? Porque me disseram que retornaria aqui em agosto, isso é verdade? Porque a Itália é um país distante do seu, e fica caríssimo retornar num espaço de tempo tão pequeno. Mesmo imaginando que você tenha recursos para isso, somente um compromisso muito importante faria isso acontecer. Pode me contar seus planos para agora e em agosto?

– Não.

– Então tem algo a esconder?

– Do diabo, tenho.

– Você está insinuando que estou falando pelo diabo?

– Não estou insinuando nada, o senhor é que está falando isso.

– Quem você irá encontrar no Vaticano?

– Ninguém.

– Você não deseja conversar a respeito, não é isso?

– Prefiro deixar as coisas desta forma; desculpe.

– Tudo bem, então nossa entrevista terminou.

– Eu tenho uma memória fotográfica, e posso mais tarde reproduzir com detalhes nossa conversa; posso fazer isso?

– Não estou lhe fornecendo entrevista para publicação, estou apenas conversando com você. Você está com gravador de som aí?

– Não – respondi.

– Se você usar desta conversa como pretexto para me prejudicar nos meus esforços para praticar exorcismos, irei processá-lo.

– Não farei isso, pode ter certeza, mesmo porque quem quis falar comigo foi o senhor, e eu não desejo falar com o senhor a respeito de exorcismos.

– Achei que poderia contar com você.

– Pode, mas apenas como leigo.

– Como leigo… como leigo… vou pensar. Tenho outras coisas a fazer, podemos encerrar?

– Podemos – respondi.

Ele me levou até a porta.

– Está chovendo, desejo lhe dar uma carona até o hotel. Que Deus o acompanhe e felicidades com o papa.

Eu apenas olhei para ele e me afastei. Andei um pouco e disse:

– Muito obrigado, vou andando, porque o hotel é perto.

– Desejo encontrá-lo mais uma vez, amanhã.

– Desculpe, padre, mas agora eu é que não desejo encontrá-lo mais. Estarei de volta em agosto, e se o senhor desejar, podemos continuar a conversa, ok?

– Em agosto, depois do encontro no Vaticano?

Eu não respondi, e fui saindo da igreja. Chegando ao hotel, tentei escrever tudo que lembrava.

 

Referência: LOPES, Raymundo. Roma: Uma conversa que não estava no programa. In: LEMBI, Francisco. Raymundo Lopes, Daniel: Uma incógnita dos finais dos tempos. Belo Horizonte: Magnificat, 2010. p. 138-145.

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